4 de dezembro de 2008

caboclinhos (encaustica s/tela, 1952)

Era terça-feira quando o ele que morava comigo me disse que a manchete do dia era o adeus-pra-sempre. Uma hora ou outra aconteceria e eu até esperava pra esse ano, já que em todos os meus períodos férteis ele não me fecundara. A semente morre. O óvulo envelhece. A vida não se renova. E tudo que não se renova: extingue. Nem sempre do algodão úmido nascia um pé-de-feijão. Nem todo o bonsai comprado de um japonês do Paraguai, sobrevivia.

Sábado ele me rondava feito felino castrado. Eu lavava uma pilha de pratos e copos porque a família aportara para o jantar. Minha mãe falava sobre a primavera, as alergias, os espirros. Meu pai comentava que logo um avião cairia, era a temporada das quedas. Minha avó puxava os pêlos do rosto para se lembrar de quem era. Eu ruminava uma alface. Ele me olhava pra antecipar a feição do meu desatino ao me dizer na terça que partiria. Enquanto Zeca Baleiro se grudava às juntas da minha alma breve despedaçada. E eu já via no olhar do cara que me encantava desde que decidi parar de fumar e ser uma pessoa legal, que ele não era o Zeca e sua voz grave, ele era simples e ganhava pouco, fora resgatado de um lar órfão, tinha 13 anos a menos e se encaixava direitinho entre minhas pernas. E era um felino. Medroso. Zeloso. De si mesmo. Assim no final do sábado fui deixada debaixo do lençol, trocada por várias doses de decisões sem gelo nem limão mas a firme idéia de ser deixada. Estava escrito em seus olhos que partiria mesmo que eu fizesse escândalo e me humilhasse. Sem estratégia alguma de proteção ou contra-ataque, assistia em silêncio um homem se despedindo do seu destino e o destino molhado de lágrimas temia desmoronar. A gente sentia. Mulher sabia. Quando a porta se fechava atrás de um cara pra nunca mais se abrir pela sua mão. A última pá de terra. A flor que cai delicadamente sobre o caixão. A palavra amém dita entredentes. E o primeiro sentimento era o de alívio, lá se vai o traste, menos dois centímetros de carma, oh, santa cruz que saiu de meus ombros. E depois o suicídio por dentro.

Mas o que acontecia no meu caso era que eu não me matava por matar. E eu tava com preguiça de planejar a minha extinção. E se ele mudasse de idéia e voltasse? E se eu tivesse dado cabo de mim e. Para onde ele voltaria?

E se ele voltasse para alguém que não fosse eu? E se eu não tivesse mais para quem voltar?

No domingo ele contava estrelas entre uma rabiscada e outra num pedaço de papel. E quando saiu pra comprar cigarro ou telefonar pra outra ou visitar um lugar pra morar quando me matasse de si, eu fucei. Farejei tal qual cadela sem vergonha na cara. Revirei tudo. Encontrei o papel com desenhos confusos, estrelas, lua, as iniciais de seu nome em maiúsculo, fortes, caneta azul depois preta, escrito: terça-feira sem falta. Comi o papel e a profecia, engoli sem água o futuro. Se me deixasse eu morreria. Sem ele eu não era eu. Sem mim ele não era ninguém.

Outro dia eu era especial e miolo e beijo profundo me lavando as pétalas. Outro dia não era terça. Outro dia não era noite. Outro dia não era foice. Outro dia não era desespero. Outro dia era antes, segunda. E na segunda as lojas Americanas abriam. O único jeito de reter o amor era costurá-lo sobre uma superfície segura. A cama.

Mas nas lojas americanas não tinha linha de costura. Tive de andar pelo centro exibindo olheiras, parafusos soltos, imensidão de aura vazada de vultos. Até que cheguei a um lugar branco e comprei linha de suturar peles humanas. E quase ri entre soluços e espasmos de demente:

-Costure meus pulsos, verte amor, que desperdício, moço, não acha?

O moço não entendeu porque só fazia sexo. Pra conter a dor da solidão.

Peguei o ônibus errado e me perdi na cidade que nasci. A angústia era tanta que meus olhos evitavam olhar pra fora. De mim.

E ele não partiu na terça. Nem na quarta. Nem na sexta. Enquanto dormia eu despertei artesã, artista da paixão. Meu lado mais mulherzinha enfiou a linha no buraco da agulha. Meu lado mais Amélia despejou sonífero no suquinho de laranja espremido na hora, amor, quer? O amor queria. Meu lado mais humano mostrou o focinho gelado e doente, debruçou-se sobre o corpo inerte daquele. Que mais humana me deixava chorando à míngua. E costurado ele foi. Costurado ao colchão. Para nunca mais fugir. Pele pedaços colados na linha e tramas dos fios da colcha de amortelassê. Ali ficou.

Partiu enfim no domingo. À janela eu me despedia dele. Debaixo da língua a pele morta se desfazia como corpo de amante que acaba de morrer, se decompor. E era tão bom mastigá-lo. A gengiva sangrando.